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As histórias das colinas

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Foto de João Rural

Por Francisco Dias de Andrade – Historiador

Quem percorre as estradas da região sabe que a fotografia acima não traz nenhum panorama extraordinário. Tanto que é bastante difícil identificar o local onde o João Rural bateu a foto.

Ainda assim, quanta história guardam esses morros… Em muitos deles ainda se vê as marcas dos antigos alinhamentos dos pés de café – uma técnica pouco sábia, que favorecia o empobrecimento do solo e contribuiu para o aspecto “pelado” comum a maior parte dos morros do Vale.

As mesmas condições de relevo ajudaram a fazer das tropas de mula o principal meio de transporte de carga da região. A imagem registra um desses antigos caminhos de tropa abandonado, galgando em uma suave diagonal a vertente bastante inclinada da colina em primeiro plano, à esquerda. Contrastando com seu abandono, vê-se a estrada de rodagem que corre mais abaixo (ao fundo da foto), ladeada em todo o trajeto por sítios e habitações humanas – que, com toda a certeza, também margeavam o caminho de tropeiros e rapidamente ruíram após o abandono completo da antiga estrada.

Mesmo a mais singela das colinas tem suas histórias. Saber reconhecê-las é algo verdadeiramente enriquecedor, mas que somente se faz possível através da frequentação das paisagens que nos são próximas. E isto foi algo que o João sempre soube.

Documento de identidade regional

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O jornal Folha da Serra , criado por João Rural, juntamente com Mauro Campos e João Carlos Braga, marcou época em Paraibuna durante as décadas de 1980 e 1990.

Em um período anterior à internet e à informática, o jornal cumpria uma importante função de noticiar acontecimentos e eventos de Paraibuna e cidades vizinhas, que de outra maneira não teriam a mesma repercussão.

Nesse sentido, é possível apontar a Folha da Serra como um dos veículos de mídia que mais contribuíram para fortalecer a identidade regional do Vale do Paraíba – principalmente dos municípios que não faziam da vida nas grandes cidades sua referência cultural maior.

O jornal ainda teve uma terceira fase a partir de 2005. Na qual também cumpriu importante papel local.

João Rural por João Rural

Nesta série de vídeos, João Rural é entrevistado no programa Gente em Destaque da TV Câmara Jacareí de abril de 2015. Ele fala sobre suas raízes, paixões culinárias, viagens.

A TV Câmara está disponível em sinal aberto no canal 61.4 UHF e também na TV por assinatura NET no canal 12 (digital) e 17 (analógico).

Parte 1

 

Parte 2

 

Parte 3

A vaca foi pro shopping

Nesta semana teve início o trabalho de seleção de material para o novo site do Instituto Chão Caipira, com estreia para junho. Esta etapa é coordenada pelo historiador Francisco de Andrade Dias, doutorando pela UNICAMP. O objetivo é disponibilizar parte do acervo do João Rural, que, ao registrar as gentes, paisagens e costumes do Vale, documentou exemplarmente as transformações da região nos últimos trinta anos.

Paralelamente a isso, estamos voltados à criação visual do site.

Abaixo, um dos exemplares pitorescos da coleção. Uma vaca pastando em frente ao CenterVale Shopping, em São José dos Campos, na década de 1980.

Center

…no fundo do meu tacho

Por João Rural

 

Ainda menino, com cinco, seis anos, lá no Bairro do Mata Onça em Paraibuna, minha avó tinha uma casa grande de pau a pique, que não me lembro direito como era por dentro. Mas me recordo muito bem o galpão que tinha ao lado, com o engenho de cana-de-açúcar, a roda de ralar mandioca e os tachos de cobre pra ferver o caldo de cana, fazer rapadura e torrar a farinha de mandioca. Ali me divertia com os equipamentos ou comendo as coisas que saiam do fogo, preparadas pelo meu tio e minha mãe.

 

Iniciando na comida

A gente pegava mandioca, descascava e jogava inteira no melado. Quando amolecia, retirava e colocava numa gamela pra comer. Fazia-se o mesmo com a abóbora madura, cortada em pedaços, deixando com a casca.

Era divertido sair à tarde pra passar a peneira no ribeirão e pegar pitus, guarus, peixinhos, caranguejos e lambaris. De vez em quando, uma cobra d´água… E, aí, correria pra todo lado. Só susto. Depois de um caldeirãozinho cheio, limpeza total da caça. Minha mãe levava tudo pra uma fritadeira e deixava dourar, bem temperado. Farinha de milho branca de monjolo pra completar, e lá vamos nós jantar mexido de peixinhos. Em algumas ocasiões, fazia-se um angu de farinha e misturava os peixinhos, enrolava numa folha de caeté e assava no borralho do fogão de lenha (assim mesmo que os caipiras falavam). Era a moqueca, a po-keka verdadeira.

E quando íamos procurar os poções no Rio Paraitinga, que passava ali perto, pra pegar traíras e bagres… De vez em quando um dourado fisgado pelo meu tio João Lhar. No caminho, passávamos na casa do Seu Aristides para tomar um café e bater um dedo de prosa. Pra acompanhar, café com bolo de fubá. Lembro que ele tinha um filho meio especial, o Alaor. Todos os dias ele passava com a tropa em frente a nossa casa, levando o leite do dia. Quando escutava o som do sinete que o burro frenteiro carregava, saía correndo abrir a porteira. O Alaor, muito divertido, deixava a gente montar um pouco até a outra porteira. E lá ia o Alaor comandando a sua tropa até o Bairro do Campo Redondo e nós pra casa.

 

Delícias do leite

Mudamos pro Bairro do Campo Redondo, onde meu pai foi tomar conta de um posto de leite da Usina Vigor. Aí a delícia era comer as bolinhas de manteiga que formavam nos latões trazidos pelas tropas de outros bairros. Outra delícia era quando chovia muito e os caminhões não conseguiam enfrentar as estradas. Meu pai desnatava o leite todo, fazendo manteiga e minha mãe fazia requeijão, queijos e coalhadas pra comermos.

Pelos idos de 1959, já estávamos morando na cidade, mais precisamente na Vila Camargo, propriedade de um dos descendentes da família Camargo. Meu pai continuou a trabalhar na Vigor, que ficava próximo à Fazenda São Rafael, propriedade do Nicanor de Camargo Neves.

Mas, como encontrou muita terra ociosa, fez uma parceria com a fazenda e passou a plantar milho, feijão e hortaliças. Aí, eu e meus irmãos maiores passamos a cuidar da horta, colher e vender na cidade.

Com 11 anos tive um problema de doença na perna e fiquei no hospital por seis meses. Quando voltei, não pude mais ir pra roça. Então fiquei na cozinha a descascar batatas, picar cebola, escolher feijão e outras pequenas tarefas. Nessa época, meu pai tinha pelo menos cinco empregados na lavoura. Eu ia levar o almoço no lugar do serviço. Nunca esqueço que a comida era arrumada num caldeirãozinho individual. Então eu arrumava um pra mim e levava pra comer lá na roça, sentado em baixo de uma árvore. A comida era arrumada de tal maneira, uma em cima da outra, que quando se ia comer a salada que ficava por cima, já tinha o sabor do feijão que tava no fundo do caldeirão.

Ali, num dos casarões abandonados, instalou-se uma fábrica de queijo, do Jaimão, diretor da Vigor na época. Fomos pra lá ajudar na fabricação de queijos, manteiga e requeijão. Como a fazenda tinha uma plantação de bananas, meu pai resolveu cuidar e minha mão começou a fazer doce. Talvez seja o primeiro doce de banana de Paraibuna, só que não ficou famoso. Assim nos finais de semana meu pai instalava uma barraca, que ele mesmo fez, na entrada do Bairro do Cuba, junto à Tamoios, e íamos vender queijos e o doce de banana, que minha mãe fazia em pedaços. No sábado de manhã era ali, no domingo à tarde era do ouro lado da estrada, em local antes dos turistas chegarem ao centro da cidade.

 

De cabeça na cidade

Logo a Vila Camargo foi desapropriada pra construção de uma vila de empregados que construiriam a represa. Meu pai comprou um terreninho perto da Usina Vigor e começou a erguer uma casinha. Mas inicialmente fomos morar na Rua Nova, na cidade, bem atrás do mercadão. Passei a frequentar muito o local, tomando contato com o fogado e pastel do Manezinho. Com 14 anos fui trabalhar no armazém do Ditinho, dentro do mercadão. Depois fui vender na rua as deliciosas empadas pro João Dutra. Eram fritas e não assadas. Passei pra uma barraca no Largo do Mercado, onde aprendi a fazer o pastel de feira, o primeiro da cidade.

Mudamos, mesmo sem terminar o reboco. Mais uma vez o destino leva pra comida. Bem em frente, funcionava uma fábrica de farinha de milho. Com a morte de meu pai, lá fui eu trabalhar na fábrica do Seu Moacir. Mas logo eu e meu irmão Néri fomos trabalhar no Bazar do Déia, e fui ficando fora do rumo dos sabores. Mas tinha importância no meu destino futuro. Aos poucos fui vender revistas e jornais na Estação Rodoviária da cidade, assim tomei contato com a comunicação, lendo muito, e de graça. Junto vendia bilhetes de loteria do Seu Antônio Mathias dos Reis Filho. Vendo nossa situação, ele acabou adquirindo o negócio do Seu Déia e passei a gerenciar pra ele. Assim o negócio prosperou com vendas de discos e loteria esportiva. Nessa época me interessei pela fotografia e, no final de 73, resolvi vender tudo e ir pra São Paulo estudar fotografia, comunicação, cinema. Mas, chegando ao SENAC em São Paulo, só tinha curso de gastronomia. Lá fui eu fazer e esperar abrir o de fotografia. Continuei em São Paulo, estudando o que queria, fazendo faculdade de turismo e comunicação.

Em 1977, comecei a voltar aos poucos, indo trabalhar na Prefeitura. De início criamos a FAPAP, Feira Agropecuária e Festa do Milho, como trabalho da faculdade.

Apesar de entrar pra comunicação, criando na cidade o jornal Folha da Serra, em 1982 já estava com o restaurante caipira, que funcionou por quatro anos.

Em 1986 mudei pra São José dos Campos, pra trabalhar no jornal ValeParaibano, onde editei o suplemento Vale Rural e assessorava algumas empresas do ramo rural.

Em 1993, de volta a Paraibuna, pra trabalhar na Prefeitura, novamente com um novo restaurante funcionando. Em 1996, com o programa Vale Rural, na TV Band Vale, largamos tudo e rodamos o Vale produzindo reportagens rurais e, principalmente, da comida regional.

 

João Rural

A partir de então, passei a entender o desvio da vida em busca da comunicação. Consegui juntar a comunicação, o turismo e a gastronomia e gerar resultados com a produção de vídeos, jornais, livros e publicidade sobre a comida regional do Vale do Paraíba.

 

Texto originalmente publicado no Livro “no Fundo do Tacho”, João Rural, de 2013.

João Plural

Por Dimas Soares Alvarenga

Principiando tudo do começo, a verdade é que não existe João. O que tem são Joões.

Assim, assim dizendo, parece observação desimportante, mas não é não.

João, esse de que vos falo, é vários, cheio de peripécias diferentes, que muda e desmuda conforme o tempo.

Ainda que lhe pareça apenas um, João é além desse que a gente vê. O João-Pessoa, o personagem que anda pelas pedras das ruas e o pó das estradas, subindo e descendo serra catando fatos, fotos, colecionando conversas, personagens, histórias e estórias, como quem costura a colcha de retalhos miúdos do povo de um lugar. João recolhendo imagens das gentes e das paisagens, guardadas, preciosas, nas suas fotografias.

Outro João leva na algibeira presentinhos que ele vai distribuindo por onde passa. Prosas, palpites, pitos, papéis, receitas de pastéis, antiguidades, novidades.

Há o João que trabalha, já que não se pode dar nome de trabalho, assim legalmente falando, a toda essa consultoria grátis que ele espalha por aí a fazendeiros, prefeitos, doceiras, cozinheiras, cantadores, fotógrafos, cineastas, violeiros, cantadores, universitários, bêbados, vagabundos… uma gente-sem-fim de um Brasil que não acaba mais.

Tem o João que leva a pasta com muitos papéis debaixo do braço. Carrega o baú de coisas para mostrar, falar, vender, impressionar, puxar assunto, na roça, no bar, na praça, no Pastel do Manezinho, domingo de manhã. Conversas novidadeiras de coisas antigas. Quem inventou essa receita? Leva coentro? Afinal, é fogado, folgado ou afogado? Caipira original nem comia carne de gado. Por que a música caipira é triste. Porque o batuque dos negros é alegre. Essa pinga não vale nada. Por falar nisso, político não respeita a arte do povo. Esse é o João Manancial. Típico museu de cultura popular ambulante a céu aberto. Pergunte alguma coisa da nossa terra, João sabe. E se não sabe, ele conta outra história parecida, paralela, desconversa, segue adiante com outra fábula. Bom proseador como os antigos, mas tudo entrecortado por novidades internéticas, cibernéticas, semióticas, semânticas, futurísticas, essas coisas mais complicadas que ele aprendeu na capital. Esse é o João Prosa. Também conhecido pela alcunha João Evangelista, andarilho, profeta das coisas da Terra e da gente.

João Pardal. Inventa coisas toda hora. Inventa fotografias impressionantes, escreve, inventa frases, slogans, inventa Pamonhada, Paçocada, cachaçada, galinhada. João que faz livros, faz filme, faz festa popular com música, dança, quitutes e cachaça, mistura o novo e o velho, coisa profanas, coisas sacras. João Faz-Tudo, se não faz, tem uma explicação. Ou não presta ou não vale a pena. Senão ele faria.  O João Faria.

Tá solto no mundo. Mundo velho sem porteira. Serviço pra todo lado. Mundo que nunca fica pronto. Sempre se fazendo, refazendo. Mundo pra sempre inacabado. Lá vai João pra todo lado. Lá vem João. Toca viola, traz a pinga e o pastel, que lá vem João. O João Plural. Também conhecido como João Rural.


Dimas Soares Alvarenga, publicitário, para o livro Retrato de um Povo de um Lugar, ATO II, João Rural – 40 anos de imagem, 1970-2010, de abril de 2010.

João Rural provou que o caipira vive

Por Francisco Dias de Andrade – Historiador

A região do Vale do Paraíba e do Litoral Norte sempre foram zonas privilegiadas nos campos da produção e investigação cultural paulista. Ela não só serviu de inspiração para personagens fictícios, que logo ganharam destaque em âmbito nacional, como os Jecas de Monteiro Lobato e Mazzaropi, como também foi um campo dos mais fecundos na investigação cultural. Cabe citar aqui, por exemplo, as importantes pesquisas levadas a cabo a partir da segunda metade do século XX por sociólogos e antropólogos renomados, como Emilio Willems, Robert Shirley, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Carlos Rodrigues Brandão.

No campo da preservação histórica, o Vale do Paraíba também teve um papel de destaque. Desde os primórdios das iniciativas preservacionistas no país, técnicos e pesquisadores têm encontrado na região um local dos mais fecundos em termos de testemunhos históricos e bens culturais das mais diversas épocas e origens. A fazenda Engenho d’Água, em Ilhabela; a fazenda Pau d’Alho, em São José do Barreiro, e o centro histórico de São Luiz do Paraitinga são alguns dos bens culturais da região reconhecidos pelo IPHAN como patrimônios nacionais. No âmbito estadual, o CONDEPHAAT conta com dezenas de bens tombados no Vale do Paraíba e Litoral Norte, como o Sanatório Vicentina Aranha, em São José dos Campos, o centro histórico de Areias e a própria Serra do Mar, em um tombamento que abrange vários municípios da região.

A rica história da produção e investigação cultural do Vale do Paraíba reflete-se no protagonismo que a região vem desempenhando, em âmbito estadual, nos últimos tempos. São Luiz do Paraitinga é o principal exemplo de uma cidade que soube valorizar sua cultura através das mais diversas manifestações, como marchinhas carnavalescas, festas religiosas e outras manifestações culturais típicas, como as modas de viola caipira e folguedos folclóricos. Existem, entretanto, outros municípios que se destacam em outros segmentos culturais. A cidade de Silveiras é uma das referências do tropeirismo, abrigando um evento dos mais importantes, a Festa do Tropeiro. Já a cidade de Cunha tornou-se rapidamente uma referência para a agroecologia brasileira, sediando anualmente a Feira de Sementes Crioulas e Mudas. Além disso, cumpre mencionar as dezenas de grupos folclóricos em atividade nas cidades da região, como os jongueiros de Guaratinguetá, os grupos de Moçambique em Paraibuna e as Congadas de Lagoinha. Já no Litoral Norte, os municípios de São Sebastião e Ubatuba merecem também ser mencionados por suas iniciativas pioneiras na implantação de políticas públicas municipais de proteção ao patrimônio histórico e de garantia de direitos a comunidades tradicionais de quilombolas e caiçaras.

Essa profícua trajetória cultural do Vale do Paraíba e Litoral Norte reflete-se no papel de destaque que a região ocupa dentro de alguns dos principais acervos e coleções iconográficas de caráter público no estado de São Paulo. Na realidade, trata-se esse de um campo no qual o protagonismo do Vale do Paraíba é quase incontestável.

Carlos Borges Schmidt

Desde a primeira metade do século XX, quando as iniciativas de pesquisas e documentação cultural têm início no estado de São Paulo, nossa região abrigou a maior parte das iniciativas públicas e particulares de documentação e registro cultural. Daremos aqui destaque a duas coleções de maior importância para nossos fins.

O primeiro fundo é a coleção do pesquisador Carlos Borges Schmidt (1908-1980), hoje pertencente ao Museu da Imagem e Som, na cidade de São Paulo. Mesmo que ainda pouco explorada, trata-se de uma das mais ricas coleções de fotografias e negativos voltadas para as manifestações culturais rurais de São Paulo. A coleção conta com cerca de 1.200 fotografias e mais de 2.000 negativos, a grande maioria feita pelo próprio Schmidt durante suas viagens de pesquisa – muitas delas em companhia do sociólogo Emilio Willems e do folclorista Alceu Maynard Araújo. Os registros foram compostos entre as décadas de 1930 e 1960 e compõem o mais rico acervo fotográfico sobre a cultura caipira de São Paulo, documentando os mais diversos aspectos da vida rural da época, como os trabalhos agrícolas, procissões e festas religiosas, a arquitetura de casas, capelas e pequenos núcleos urbanos e rurais e o artesanato de trançados, alfaias caseiras e instrumentos musicais. Embora as pesquisas de Schmidt tenham abrangido diversas zonas do estado (como o Vale do Ribeira e Litoral Sul e a região de Rio Claro, Sorocaba e os arredores da Capital), nenhuma outra região foi mais assiduamente frequentada por ele do que o Vale do Paraíba e Litoral Norte. Há assim centenas de fotos tiradas em municípios da região como Cunha, Ubatuba, São Luiz do Paraitinga, Redenção da Serra, Paraibuna, Silveiras, Areais, Bananal, São José do Barreiro, Lagoinha e Taubaté. Há também mais um grande número de fotos e negativos de municípios próximos, como Mogi das Cruzes, Salesópolis, Santa Izabel, Bragança Paulista, além de Parati- RJ.

A coleção de Carlos Borges Schmidt, composta entre as décadas de 1930 e 1960, constituí-se, portanto, no principal registro da vida rural da região na época imediatamente anterior à forte urbanização que vem pautando o desenvolvimento do Vale do Paraíba desde então. Trata-se esse de um fator importantíssimo a ser considerado para nossos propósitos, posto que estabelece um ponto de partida para o que vem a ser uma linha quase contínua de um verdadeiro corpus iconográfico da região que chegará até os dias de hoje.

O lugar estratégico do Vale do Paraíba, via de ligação natural entre as metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro, acentuou o processo de industrialização e o decorrente crescimento urbano que a região vem passando desde a década de 1960. Embora puxado por algumas poucas cidades principais, como São José dos Campos, Taubaté e Jacareí, esse processo acarretou em grande êxodo rural que acometeu todos os municípios do Vale do Paraíba, alterando drasticamente os padrões da vida rural. Ademais, o crescimento do porto de São Sebastião e a forte balnearização experimentada por todas as cidades do Litoral Norte também acarretaram forte ruptura nos modos de vida das comunidades litorâneas.

CONDEPHAAT

Esse decisivo momento de transição demográfica regional foi também muito bem documentado, encontrando-se hoje igualmente sob a guarda de um órgão público da Secretaria de Cultura do Estado. Durante década de 1970, o recém-instituído órgão estadual de preservação cultural, o Condephaat, iniciou um detalhado inventário do patrimônio cultural paulista, que não só mapearia os sítios dignos de tombamento, como também serviria para nortear novas políticas de preservação cultural. A primeira região a ser inventariada foi o Vale do Paraíba, em um trabalho de pesquisa e registro que durou entre 1975 e 1978, resultando em centenas de desenhos e fotografias dos bens arquitetônicos da região.

Embora as atenções estivessem voltadas inicialmente para as técnicas construtivas da arquitetura da região, o levantamento do Condephaat logo se tornou um dos mais interessantes e fecundos inventários já realizados, inovando a abordagem da arquitetura histórica. Ao documentar não apenas os exemplares arquitetônicos monumentais, como grandes fazendas de café, solares urbanos e igrejas ricamente ornamentadas, mas voltar-se principalmente para a arquitetura vernacular, o levantamento aproxima-se mais de um estudo pormenorizado da cultura material do Vale do Paraíba. Assim, somam se centenas de desenhos e fotos de casas caipiras de pau-a-pique, bairros rurais, pequenas capelas, oratórios domésticos, fornos de barro, engenhos de farinhas, monjolos, moinhos d’água, carros de boi, olarias de tijolos, antigos pousos de tropas e pontes rudimentares. Em suma, há registros de quase todos os elementos que em conjunto formavam uma verdadeira e coesa paisagem cultural.

Após a conclusão dessa primeira etapa, o programa de inventários foi interrompido e as outras regiões do estado nunca foram percorridas, fazendo com que apenas o Vale do Paraíba dispusesse de um levantamento tão detalhado feito pelo Condephaat.

João Rural

Justamente na mesma época em que o inventário do Condephaat ia terminando, o jovem João Evangelista de Faria retornava para Paraibuna, sua cidade natal. Tendo estudado fotografia em São Paulo, onde cursou a faculdade de jornalismo, João iria logo iniciar uma incessante atividade de fotografar as paisagens e gentes do Vale do Paraíba e do Litoral Norte.

Contrariando as vozes correntes nos grandes centros urbanos, que decretavam como morta a cultura caipira tradicional, João passou os últimos trinta anos registrando e promovendo a cultura de sua região. Suas lentes não deixaram de capturar nenhum aspecto da cultura rural da região. A culinária caipira e a vidas dos tropeiros foram suas grandes paixões e tornaram-se temas de predileção em sua fotografia, em suas reportagens e publicações, mas nunca foram interesses exclusivos. Estão ali registradas as festas religiosas e suas procissões e folguedos folclóricos, os mais diversos ofícios e trabalhos relacionados à vida rural, bem como as casas, os locais de trabalho e de lazer, os sítios e capelas que compõem as paisagens do Vale do Paraíba e Litoral Norte.

Se hoje essa região ocupa local de destaque no panorama cultural do estado, é porque João Rural provou-se certo contra os vaticínios pessimistas que davam como morta a cultura do homem rural em nosso estado. E após sua morte, ocorrida em 2015, cumpre agora garantir que seu acervo – a mais recente etapa na documentação da resiliência da cultura caipira – possa perdurar e estar ao alcance de todos os interessados do mesmo modo que seus congêneres mais antigos.

Francisco Dias de Andrade, doutorando em História da Arte pela UNICAMP, coordenador cultural do Projeto João Rural

JOÃO EVANGELISTA DE FARIA

José Deia – Escritor

O JOÃO RURAL

João Rural morreu. No dia 23 de junho de 2015, Paraibuna sofreu a sua maior perda humana. Nascido em 3 de junho de 1951, ele fez muito pela cidade. Foi uma figura que só queria ajudar a terra em que nasceu. Infelizmente, as autoridades não pensaram assim. A sua vontade de trabalhar por Paraibuna era maior que a vontade política de muitos em sua cidade. João Rural, com a vontade de fazer algo importante para cidade, só arrumou inimigos.

Ele se revelou na administração do Joaquim Rico, eleito prefeito de Paraibuna em 1977. Incentivou o turismo na cidade, ajudou a fundar a FAPAP, Feira Agropecuária do Alto-Paraíba, que por muitos anos foi um sucesso, colaborou na reforma do Mercado e muito mais. Não sendo possível continuar colaborando para o sucesso da FAPAP, João foi para Jacareí, onde foi um dos fundadores da FAPIJA, Feria Agropecuária e Industrial de Jacareí. João Rural continuou como assistente e colaborador desse evento até sua morte.

Na cidade, só foi conseguir colaborar novamente com o Prefeito Dr. Zélio, construindo a Cozinha Caipira, e muito pouco com o Prefeito Loureiro. Nunca como político, apenas como voluntário, querendo ajudar nossa Paraibuna.

Mostrou suas qualidades com jornal, revistas, livros de fotografias e muito mais. Quando da sua morte, nunca se viram tantas homenagens a uma pessoa daqui. Teve seu nome em jornais, principalmente no O Vale, com uma página. Apareceu também em noticiários importantíssimos na TV Globo, com três edições. Uma logo antes do falecimento, em razão da festa, outro no dia em que ele se foi e mais uma na madrugada de sábado do dia 4 de julho de 2015. Saiu também na TV Band, com quase uma hora. Só faltou ser prestigiado pelas autoridades de Paraibuna.

Por coincidência, a leitura do Evangelho do domingo dia 5 de julho de 2015 foi assim:

Mc 6, 1-6 – Jesus foi a Nazaré, sua terra, e seus discípulos o acompanharam. Quando chegou sábado, começou a ensinar na sinagoga. Muitos que o escutavam, admirados, diziam: De onde recebeu tudo isto? Como conseguiu tanta sabedoria? E esses grandes milagres que são realizados por suas mãos? Este homem não é carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram aqui conosco? Jesus lhes dizia: Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares. E ali não pode fazer milagre algum.

Comparando: Quem é esse cara? Não é o João Faria, cabeludo que trabalhava no Bazar do Deia, irmão do José Vicente, filho da D. Malvina? Onde ele aprendeu tudo isso, fazendo esse montão de coisa, jornais, revistas, álbuns de fotografia e muito mais? Pois é! Esse cara é o JOÃO RURAL!

JOÃO FARIA

1951 a 2015

Em 1969, numa segunda-feira logo de manhã, D. Gioconda, esposa do Mauro Mariano Leite, antigo proprietário do Bazar do Deia, procurou o José Deia contando uma história, em seguida fez um pedido: “Por favor, contrate o João Faria, filho de D. Malvina, para trabalhar aqui. Seu pai faleceu há pouco tempo, e sua família está sem rendas. Estão passando fome!”. O bazar estava mesmo precisando de uma pessoa para trabalhar com revista, vender e comprar discos, e o nosso amigo veio a calhar. Em pouco tempo, João Evangelista de Faria ficou entrosado no assunto, aprendeu de tudo, virou especialista. Sabia muito bem comprar discos em São Paulo e vendê-los, com um belíssimo conhecimento de músicas e lançamentos. De 1971 a 1973, trabalhou também para o Antônio Reis, que tinha uma distribuidora de jornais e revistas.

Logo em seguida, Márcio José, filho de José Deia, tinha terminado o segundo grau e precisava continuar os estudos. Surgiu uma ideia, não se sabe de onde nem como, e João Faria resolveu também estudar, fazer turismo em São Paulo. Os dois arrumaram um apartamento, num prédio bem próximo ao centro da capital, ao lado do viaduto que ligava a Avenida Celso Garcia ao Centro, e não muito longe de onde deveriam estudar. Márcio José tinha sido aprovado no vestibular da FMU, Faculdades Metropolitanas Unidas de São Paulo, onde cursou Administração de Empresa. João Evangelista de Faria deveria estudar numa faculdade de turismo em Santana. Lá ficaram os dois durante uns quatros anos. Nesse período, não largaram Paraibuna. Márcio José já tinha representações de várias firmas que distribuíam jornais e revistas, e continuou administrando esse serviço.

Em 1976, Joaquim Rico foi eleito prefeito de Paraibuna, tomando posse no dia primeiro de fevereiro de 1977. Foi quando, atendendo um pedido do José Deia, nomeou João Evangelista de Faria. João pegou bem o serviço e tornou-se o braço direito do prefeito. Quase tudo que foi feito na cidade tinha o dedo do nosso amigo João Evangelista, inclusive as festas da cidade. Primeiro foi a de São Sebastião, que deu origem à FAPAP em 1978. Organizou a festa de São Benedito, a Festa do Divino Espírito Santo, transferida para o Bairro do Espírito Santo, e, por último, a Festa de Santo Antônio, um sucesso absoluto. É pena que muito pouco continuasse, tudo o que foi mudado e o que foi adotado não foi preservado. João Evangelista de Faria não ficou até o fim do mandato, deixou a prefeitura por desentendimento, exatamente na FAPAP, que estava sendo um grande sucesso.

Saindo de Paraibuna, foi logo para Jacareí, no ano de 1983, quando colaborou na fundação da FAPIJA, um sucesso até esta data e onde o Senhor João Evangelista de Faria continuou trabalhando nas organizações do Evento até antes do seu falecimento.

Em 1980, lançou o primeiro livreto com histórias de Paraibuna.

Em 1981, lançou um caderno com poemas do Seu Siqueira.

Em 1982, foi lançado o primeiro guia turístico de Paraibuna, mostrando a represa. No mesmo ano, uma coletânea de fotos antigas de Paraibuna e cidadãos paraibunenses. Também produziu o primeiro show do Grupo Rio Acima.

No ano de 1983, fez uma reedição do Almanach de Parahybuna e lançou a Revista Vale Rural, que foi até o ano de 1987. Começou a escrever e fotografar para o Vale Paraibano, onde foi também editor do Suplemento Rural, com a criação de vários outros suplementos no mesmo jornal. Foi ainda proprietário do Caipira Restaurante Bar, de 1983 a 1987.

Em 1987, foi o criador dos “Stilosos”, um time de futebol.

Em 1990, fez o lançamento da TV Caipira.

Em 1993, fez circular na cidade o jornal Folha da Serra, que foi um sucesso.

Em 1994, idealizou a cozinha caipira “Manezinho Stábile”.

Em 1998, foi para Silveira, ficando lá até o ano de 2000, quando teve condições de lançar a Revista Vida Rural, que circulou até o ano de 2001.

Em 1999, faz sua primeira publicação com receitas da cozinha tropeira do Vale do Paraíba.

Em 2001, foi para o litoral, onde fez várias pesquisas, e lançou a Revista Nascentes, que circulou até o ano de 2005.

Em 2002/2003, produz para a TV Band Vale, o programa Fogão do João Rural, juntamente com o amigo Júlio Neme.

Em 2003, lançou o Guia Valemar e uma revista de turismo com o mesmo nome.

Em 2006, depois de uma boa pesquisa, lançou a primeira Revista Nascentes do Rio Paraíba.

Vale Rural foi um suplemento criado por João Rural quando estava trabalhando no jornal Vale Paraibano. Quando saiu, continuou com uma publicação em formato de revista. A marca era dele. Mais tarde, ele a cedeu oficialmente ao Jornal Vale Paraibano.

O que mais marcou na vida do nosso estimado amigo João Rural foram as culinárias do Fundo do Vale, onde ele passou mais de dois anos, documentando, fotografando a vida, costume do seu povo e tudo mais. João Rural ficou encantado com o Fundo do Vale, tudo para ele era maravilhoso. Conseguiu criar um acervo com mais de setenta mil fotos. Morou por muito tempo em Silveiras, aprofundando pesquisas sobre tropeiros e tropeirismo. Ele gostava muito de falar sobre as paradas das tropas para descanso dos animais: “As paradas se davam a cada 24 quilômetros, o que determinou a distância de cada cidade do Fundo do Vale”.

De Silveiras, ele saía para outras cidades, aproveitando para fotografar cerâmicas em Cunhas, figureiros em Taubaté e também pássaros entalhados em madeiras e outras particularidades da região. Em Silveiras, conversou muito com as pessoas mais humildes, os caipiras da região, aprendendo muito sobre a culinária, principalmente os pratos doces, verduras consumidas, a importância do milho na base culinária. Tudo isso foi o que mais despertou interesse de João Rural.

Logo em seguida, levou suas panelas e foi cozinhar no Revelando São Paulo, no Parque da Água Branca. O que ele gostava de falar, divertindo-se muito, era sobre seu fusca marrom, que fez cair o queixo das pessoas na frente do Hotel Grand Hyatt, onde foi realizado um encontro em 2012 do “Paladar” do Estado de São Paulo.

João Rural fez muitas outras pesquisas, inclusive do Litoral Norte Paulista, escrevendo até um livro que foi um sucesso.

Fez também, com auxílio da Vale Projetos e Eventos, e patrocínio da Petrobras, um livro a respeito, com o nome de Nascentes do Paraíba do Sul, sugerindo e mostrando a importância da preservação das nascentes desses rios.

Sempre focado e sem-cerimônia, João Rural não conseguiu apenas simpatia por onde passou. As pessoas mais ferrenhas, políticos, não têm motivos para negar a contribuição que foi dada para a preservação das memórias e tradições da região, principalmente de Paraibuna.

Realizar muito sem nenhum recurso era sua especialidade. Não se sabe onde ele aprendeu isso. Seja lá como for, ele conseguiu superar tudo isso. Mesmo como jovem, quando começou a trabalhar no Bazar do Deia, já era assim. Já tinha esse costume.

Venceu e conseguiu superar tudo, mostrando a todos o que ele era capaz de fazer. Festas, eventos, acontecimentos, em tudo ele estava presente, fotografando, opinando, para que tudo desse certo, tudo fosse um sucesso absoluto. Era um grande observador.

Um dia, ouviu o dono da Marina Paraibuna oferecer o local na represa para um representante das competições de velas no Estado de São Paulo. Pensou: “Nem de graça essa oferta pode ser aceita. No litoral nunca vai faltar água. Sempre será um local ideal para essas competições. Aqui, na represa de Paraibuna e Paraitinga, um dia vai faltar água e as competições podem ficar prejudicadas”. Acertou em cheio, hoje não temos muita água no lago e dificilmente tudo voltará ao normal.

Na última conversa que tivemos, sua preferência era culinária, mostrar a todos como era a cozinha antigamente e também escrever tudo sobre sua vida. Infelizmente, José Deia replicou: “Faça logo isso, senão pode não dar tempo”.

Seus sonhos eram muitos. Tudo o que ele fez ainda achava pouco, dizia que poderia fazer muito mais.

João Rural faleceu na madrugada do dia 23 de junho de 2015, deixou lembrança e seu nome no Brasil inteiro.

Capítulo do livro “Memórias de Parahybuna – José Deia – Outras Memórias”, 2016, quarto volume da série Cadernos Culturais editada pelo Instituto Chão Caipira “Malvina Borges de Faria”. Pode ser adquirido com o autor no Bazar do Deia.