João Rural provou que o caipira vive

Por Francisco Dias de Andrade – Historiador

A região do Vale do Paraíba e do Litoral Norte sempre foram zonas privilegiadas nos campos da produção e investigação cultural paulista. Ela não só serviu de inspiração para personagens fictícios, que logo ganharam destaque em âmbito nacional, como os Jecas de Monteiro Lobato e Mazzaropi, como também foi um campo dos mais fecundos na investigação cultural. Cabe citar aqui, por exemplo, as importantes pesquisas levadas a cabo a partir da segunda metade do século XX por sociólogos e antropólogos renomados, como Emilio Willems, Robert Shirley, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Carlos Rodrigues Brandão.

No campo da preservação histórica, o Vale do Paraíba também teve um papel de destaque. Desde os primórdios das iniciativas preservacionistas no país, técnicos e pesquisadores têm encontrado na região um local dos mais fecundos em termos de testemunhos históricos e bens culturais das mais diversas épocas e origens. A fazenda Engenho d’Água, em Ilhabela; a fazenda Pau d’Alho, em São José do Barreiro, e o centro histórico de São Luiz do Paraitinga são alguns dos bens culturais da região reconhecidos pelo IPHAN como patrimônios nacionais. No âmbito estadual, o CONDEPHAAT conta com dezenas de bens tombados no Vale do Paraíba e Litoral Norte, como o Sanatório Vicentina Aranha, em São José dos Campos, o centro histórico de Areias e a própria Serra do Mar, em um tombamento que abrange vários municípios da região.

A rica história da produção e investigação cultural do Vale do Paraíba reflete-se no protagonismo que a região vem desempenhando, em âmbito estadual, nos últimos tempos. São Luiz do Paraitinga é o principal exemplo de uma cidade que soube valorizar sua cultura através das mais diversas manifestações, como marchinhas carnavalescas, festas religiosas e outras manifestações culturais típicas, como as modas de viola caipira e folguedos folclóricos. Existem, entretanto, outros municípios que se destacam em outros segmentos culturais. A cidade de Silveiras é uma das referências do tropeirismo, abrigando um evento dos mais importantes, a Festa do Tropeiro. Já a cidade de Cunha tornou-se rapidamente uma referência para a agroecologia brasileira, sediando anualmente a Feira de Sementes Crioulas e Mudas. Além disso, cumpre mencionar as dezenas de grupos folclóricos em atividade nas cidades da região, como os jongueiros de Guaratinguetá, os grupos de Moçambique em Paraibuna e as Congadas de Lagoinha. Já no Litoral Norte, os municípios de São Sebastião e Ubatuba merecem também ser mencionados por suas iniciativas pioneiras na implantação de políticas públicas municipais de proteção ao patrimônio histórico e de garantia de direitos a comunidades tradicionais de quilombolas e caiçaras.

Essa profícua trajetória cultural do Vale do Paraíba e Litoral Norte reflete-se no papel de destaque que a região ocupa dentro de alguns dos principais acervos e coleções iconográficas de caráter público no estado de São Paulo. Na realidade, trata-se esse de um campo no qual o protagonismo do Vale do Paraíba é quase incontestável.

Carlos Borges Schmidt

Desde a primeira metade do século XX, quando as iniciativas de pesquisas e documentação cultural têm início no estado de São Paulo, nossa região abrigou a maior parte das iniciativas públicas e particulares de documentação e registro cultural. Daremos aqui destaque a duas coleções de maior importância para nossos fins.

O primeiro fundo é a coleção do pesquisador Carlos Borges Schmidt (1908-1980), hoje pertencente ao Museu da Imagem e Som, na cidade de São Paulo. Mesmo que ainda pouco explorada, trata-se de uma das mais ricas coleções de fotografias e negativos voltadas para as manifestações culturais rurais de São Paulo. A coleção conta com cerca de 1.200 fotografias e mais de 2.000 negativos, a grande maioria feita pelo próprio Schmidt durante suas viagens de pesquisa – muitas delas em companhia do sociólogo Emilio Willems e do folclorista Alceu Maynard Araújo. Os registros foram compostos entre as décadas de 1930 e 1960 e compõem o mais rico acervo fotográfico sobre a cultura caipira de São Paulo, documentando os mais diversos aspectos da vida rural da época, como os trabalhos agrícolas, procissões e festas religiosas, a arquitetura de casas, capelas e pequenos núcleos urbanos e rurais e o artesanato de trançados, alfaias caseiras e instrumentos musicais. Embora as pesquisas de Schmidt tenham abrangido diversas zonas do estado (como o Vale do Ribeira e Litoral Sul e a região de Rio Claro, Sorocaba e os arredores da Capital), nenhuma outra região foi mais assiduamente frequentada por ele do que o Vale do Paraíba e Litoral Norte. Há assim centenas de fotos tiradas em municípios da região como Cunha, Ubatuba, São Luiz do Paraitinga, Redenção da Serra, Paraibuna, Silveiras, Areais, Bananal, São José do Barreiro, Lagoinha e Taubaté. Há também mais um grande número de fotos e negativos de municípios próximos, como Mogi das Cruzes, Salesópolis, Santa Izabel, Bragança Paulista, além de Parati- RJ.

A coleção de Carlos Borges Schmidt, composta entre as décadas de 1930 e 1960, constituí-se, portanto, no principal registro da vida rural da região na época imediatamente anterior à forte urbanização que vem pautando o desenvolvimento do Vale do Paraíba desde então. Trata-se esse de um fator importantíssimo a ser considerado para nossos propósitos, posto que estabelece um ponto de partida para o que vem a ser uma linha quase contínua de um verdadeiro corpus iconográfico da região que chegará até os dias de hoje.

O lugar estratégico do Vale do Paraíba, via de ligação natural entre as metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro, acentuou o processo de industrialização e o decorrente crescimento urbano que a região vem passando desde a década de 1960. Embora puxado por algumas poucas cidades principais, como São José dos Campos, Taubaté e Jacareí, esse processo acarretou em grande êxodo rural que acometeu todos os municípios do Vale do Paraíba, alterando drasticamente os padrões da vida rural. Ademais, o crescimento do porto de São Sebastião e a forte balnearização experimentada por todas as cidades do Litoral Norte também acarretaram forte ruptura nos modos de vida das comunidades litorâneas.

CONDEPHAAT

Esse decisivo momento de transição demográfica regional foi também muito bem documentado, encontrando-se hoje igualmente sob a guarda de um órgão público da Secretaria de Cultura do Estado. Durante década de 1970, o recém-instituído órgão estadual de preservação cultural, o Condephaat, iniciou um detalhado inventário do patrimônio cultural paulista, que não só mapearia os sítios dignos de tombamento, como também serviria para nortear novas políticas de preservação cultural. A primeira região a ser inventariada foi o Vale do Paraíba, em um trabalho de pesquisa e registro que durou entre 1975 e 1978, resultando em centenas de desenhos e fotografias dos bens arquitetônicos da região.

Embora as atenções estivessem voltadas inicialmente para as técnicas construtivas da arquitetura da região, o levantamento do Condephaat logo se tornou um dos mais interessantes e fecundos inventários já realizados, inovando a abordagem da arquitetura histórica. Ao documentar não apenas os exemplares arquitetônicos monumentais, como grandes fazendas de café, solares urbanos e igrejas ricamente ornamentadas, mas voltar-se principalmente para a arquitetura vernacular, o levantamento aproxima-se mais de um estudo pormenorizado da cultura material do Vale do Paraíba. Assim, somam se centenas de desenhos e fotos de casas caipiras de pau-a-pique, bairros rurais, pequenas capelas, oratórios domésticos, fornos de barro, engenhos de farinhas, monjolos, moinhos d’água, carros de boi, olarias de tijolos, antigos pousos de tropas e pontes rudimentares. Em suma, há registros de quase todos os elementos que em conjunto formavam uma verdadeira e coesa paisagem cultural.

Após a conclusão dessa primeira etapa, o programa de inventários foi interrompido e as outras regiões do estado nunca foram percorridas, fazendo com que apenas o Vale do Paraíba dispusesse de um levantamento tão detalhado feito pelo Condephaat.

João Rural

Justamente na mesma época em que o inventário do Condephaat ia terminando, o jovem João Evangelista de Faria retornava para Paraibuna, sua cidade natal. Tendo estudado fotografia em São Paulo, onde cursou a faculdade de jornalismo, João iria logo iniciar uma incessante atividade de fotografar as paisagens e gentes do Vale do Paraíba e do Litoral Norte.

Contrariando as vozes correntes nos grandes centros urbanos, que decretavam como morta a cultura caipira tradicional, João passou os últimos trinta anos registrando e promovendo a cultura de sua região. Suas lentes não deixaram de capturar nenhum aspecto da cultura rural da região. A culinária caipira e a vidas dos tropeiros foram suas grandes paixões e tornaram-se temas de predileção em sua fotografia, em suas reportagens e publicações, mas nunca foram interesses exclusivos. Estão ali registradas as festas religiosas e suas procissões e folguedos folclóricos, os mais diversos ofícios e trabalhos relacionados à vida rural, bem como as casas, os locais de trabalho e de lazer, os sítios e capelas que compõem as paisagens do Vale do Paraíba e Litoral Norte.

Se hoje essa região ocupa local de destaque no panorama cultural do estado, é porque João Rural provou-se certo contra os vaticínios pessimistas que davam como morta a cultura do homem rural em nosso estado. E após sua morte, ocorrida em 2015, cumpre agora garantir que seu acervo – a mais recente etapa na documentação da resiliência da cultura caipira – possa perdurar e estar ao alcance de todos os interessados do mesmo modo que seus congêneres mais antigos.

Francisco Dias de Andrade, doutorando em História da Arte pela UNICAMP, coordenador cultural do Projeto João Rural

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