Monthly Archives: fevereiro 2016

…no fundo do meu tacho

Por João Rural

 

Ainda menino, com cinco, seis anos, lá no Bairro do Mata Onça em Paraibuna, minha avó tinha uma casa grande de pau a pique, que não me lembro direito como era por dentro. Mas me recordo muito bem o galpão que tinha ao lado, com o engenho de cana-de-açúcar, a roda de ralar mandioca e os tachos de cobre pra ferver o caldo de cana, fazer rapadura e torrar a farinha de mandioca. Ali me divertia com os equipamentos ou comendo as coisas que saiam do fogo, preparadas pelo meu tio e minha mãe.

 

Iniciando na comida

A gente pegava mandioca, descascava e jogava inteira no melado. Quando amolecia, retirava e colocava numa gamela pra comer. Fazia-se o mesmo com a abóbora madura, cortada em pedaços, deixando com a casca.

Era divertido sair à tarde pra passar a peneira no ribeirão e pegar pitus, guarus, peixinhos, caranguejos e lambaris. De vez em quando, uma cobra d´água… E, aí, correria pra todo lado. Só susto. Depois de um caldeirãozinho cheio, limpeza total da caça. Minha mãe levava tudo pra uma fritadeira e deixava dourar, bem temperado. Farinha de milho branca de monjolo pra completar, e lá vamos nós jantar mexido de peixinhos. Em algumas ocasiões, fazia-se um angu de farinha e misturava os peixinhos, enrolava numa folha de caeté e assava no borralho do fogão de lenha (assim mesmo que os caipiras falavam). Era a moqueca, a po-keka verdadeira.

E quando íamos procurar os poções no Rio Paraitinga, que passava ali perto, pra pegar traíras e bagres… De vez em quando um dourado fisgado pelo meu tio João Lhar. No caminho, passávamos na casa do Seu Aristides para tomar um café e bater um dedo de prosa. Pra acompanhar, café com bolo de fubá. Lembro que ele tinha um filho meio especial, o Alaor. Todos os dias ele passava com a tropa em frente a nossa casa, levando o leite do dia. Quando escutava o som do sinete que o burro frenteiro carregava, saía correndo abrir a porteira. O Alaor, muito divertido, deixava a gente montar um pouco até a outra porteira. E lá ia o Alaor comandando a sua tropa até o Bairro do Campo Redondo e nós pra casa.

 

Delícias do leite

Mudamos pro Bairro do Campo Redondo, onde meu pai foi tomar conta de um posto de leite da Usina Vigor. Aí a delícia era comer as bolinhas de manteiga que formavam nos latões trazidos pelas tropas de outros bairros. Outra delícia era quando chovia muito e os caminhões não conseguiam enfrentar as estradas. Meu pai desnatava o leite todo, fazendo manteiga e minha mãe fazia requeijão, queijos e coalhadas pra comermos.

Pelos idos de 1959, já estávamos morando na cidade, mais precisamente na Vila Camargo, propriedade de um dos descendentes da família Camargo. Meu pai continuou a trabalhar na Vigor, que ficava próximo à Fazenda São Rafael, propriedade do Nicanor de Camargo Neves.

Mas, como encontrou muita terra ociosa, fez uma parceria com a fazenda e passou a plantar milho, feijão e hortaliças. Aí, eu e meus irmãos maiores passamos a cuidar da horta, colher e vender na cidade.

Com 11 anos tive um problema de doença na perna e fiquei no hospital por seis meses. Quando voltei, não pude mais ir pra roça. Então fiquei na cozinha a descascar batatas, picar cebola, escolher feijão e outras pequenas tarefas. Nessa época, meu pai tinha pelo menos cinco empregados na lavoura. Eu ia levar o almoço no lugar do serviço. Nunca esqueço que a comida era arrumada num caldeirãozinho individual. Então eu arrumava um pra mim e levava pra comer lá na roça, sentado em baixo de uma árvore. A comida era arrumada de tal maneira, uma em cima da outra, que quando se ia comer a salada que ficava por cima, já tinha o sabor do feijão que tava no fundo do caldeirão.

Ali, num dos casarões abandonados, instalou-se uma fábrica de queijo, do Jaimão, diretor da Vigor na época. Fomos pra lá ajudar na fabricação de queijos, manteiga e requeijão. Como a fazenda tinha uma plantação de bananas, meu pai resolveu cuidar e minha mão começou a fazer doce. Talvez seja o primeiro doce de banana de Paraibuna, só que não ficou famoso. Assim nos finais de semana meu pai instalava uma barraca, que ele mesmo fez, na entrada do Bairro do Cuba, junto à Tamoios, e íamos vender queijos e o doce de banana, que minha mãe fazia em pedaços. No sábado de manhã era ali, no domingo à tarde era do ouro lado da estrada, em local antes dos turistas chegarem ao centro da cidade.

 

De cabeça na cidade

Logo a Vila Camargo foi desapropriada pra construção de uma vila de empregados que construiriam a represa. Meu pai comprou um terreninho perto da Usina Vigor e começou a erguer uma casinha. Mas inicialmente fomos morar na Rua Nova, na cidade, bem atrás do mercadão. Passei a frequentar muito o local, tomando contato com o fogado e pastel do Manezinho. Com 14 anos fui trabalhar no armazém do Ditinho, dentro do mercadão. Depois fui vender na rua as deliciosas empadas pro João Dutra. Eram fritas e não assadas. Passei pra uma barraca no Largo do Mercado, onde aprendi a fazer o pastel de feira, o primeiro da cidade.

Mudamos, mesmo sem terminar o reboco. Mais uma vez o destino leva pra comida. Bem em frente, funcionava uma fábrica de farinha de milho. Com a morte de meu pai, lá fui eu trabalhar na fábrica do Seu Moacir. Mas logo eu e meu irmão Néri fomos trabalhar no Bazar do Déia, e fui ficando fora do rumo dos sabores. Mas tinha importância no meu destino futuro. Aos poucos fui vender revistas e jornais na Estação Rodoviária da cidade, assim tomei contato com a comunicação, lendo muito, e de graça. Junto vendia bilhetes de loteria do Seu Antônio Mathias dos Reis Filho. Vendo nossa situação, ele acabou adquirindo o negócio do Seu Déia e passei a gerenciar pra ele. Assim o negócio prosperou com vendas de discos e loteria esportiva. Nessa época me interessei pela fotografia e, no final de 73, resolvi vender tudo e ir pra São Paulo estudar fotografia, comunicação, cinema. Mas, chegando ao SENAC em São Paulo, só tinha curso de gastronomia. Lá fui eu fazer e esperar abrir o de fotografia. Continuei em São Paulo, estudando o que queria, fazendo faculdade de turismo e comunicação.

Em 1977, comecei a voltar aos poucos, indo trabalhar na Prefeitura. De início criamos a FAPAP, Feira Agropecuária e Festa do Milho, como trabalho da faculdade.

Apesar de entrar pra comunicação, criando na cidade o jornal Folha da Serra, em 1982 já estava com o restaurante caipira, que funcionou por quatro anos.

Em 1986 mudei pra São José dos Campos, pra trabalhar no jornal ValeParaibano, onde editei o suplemento Vale Rural e assessorava algumas empresas do ramo rural.

Em 1993, de volta a Paraibuna, pra trabalhar na Prefeitura, novamente com um novo restaurante funcionando. Em 1996, com o programa Vale Rural, na TV Band Vale, largamos tudo e rodamos o Vale produzindo reportagens rurais e, principalmente, da comida regional.

 

João Rural

A partir de então, passei a entender o desvio da vida em busca da comunicação. Consegui juntar a comunicação, o turismo e a gastronomia e gerar resultados com a produção de vídeos, jornais, livros e publicidade sobre a comida regional do Vale do Paraíba.

 

Texto originalmente publicado no Livro “no Fundo do Tacho”, João Rural, de 2013.

João Plural

Por Dimas Soares Alvarenga

Principiando tudo do começo, a verdade é que não existe João. O que tem são Joões.

Assim, assim dizendo, parece observação desimportante, mas não é não.

João, esse de que vos falo, é vários, cheio de peripécias diferentes, que muda e desmuda conforme o tempo.

Ainda que lhe pareça apenas um, João é além desse que a gente vê. O João-Pessoa, o personagem que anda pelas pedras das ruas e o pó das estradas, subindo e descendo serra catando fatos, fotos, colecionando conversas, personagens, histórias e estórias, como quem costura a colcha de retalhos miúdos do povo de um lugar. João recolhendo imagens das gentes e das paisagens, guardadas, preciosas, nas suas fotografias.

Outro João leva na algibeira presentinhos que ele vai distribuindo por onde passa. Prosas, palpites, pitos, papéis, receitas de pastéis, antiguidades, novidades.

Há o João que trabalha, já que não se pode dar nome de trabalho, assim legalmente falando, a toda essa consultoria grátis que ele espalha por aí a fazendeiros, prefeitos, doceiras, cozinheiras, cantadores, fotógrafos, cineastas, violeiros, cantadores, universitários, bêbados, vagabundos… uma gente-sem-fim de um Brasil que não acaba mais.

Tem o João que leva a pasta com muitos papéis debaixo do braço. Carrega o baú de coisas para mostrar, falar, vender, impressionar, puxar assunto, na roça, no bar, na praça, no Pastel do Manezinho, domingo de manhã. Conversas novidadeiras de coisas antigas. Quem inventou essa receita? Leva coentro? Afinal, é fogado, folgado ou afogado? Caipira original nem comia carne de gado. Por que a música caipira é triste. Porque o batuque dos negros é alegre. Essa pinga não vale nada. Por falar nisso, político não respeita a arte do povo. Esse é o João Manancial. Típico museu de cultura popular ambulante a céu aberto. Pergunte alguma coisa da nossa terra, João sabe. E se não sabe, ele conta outra história parecida, paralela, desconversa, segue adiante com outra fábula. Bom proseador como os antigos, mas tudo entrecortado por novidades internéticas, cibernéticas, semióticas, semânticas, futurísticas, essas coisas mais complicadas que ele aprendeu na capital. Esse é o João Prosa. Também conhecido pela alcunha João Evangelista, andarilho, profeta das coisas da Terra e da gente.

João Pardal. Inventa coisas toda hora. Inventa fotografias impressionantes, escreve, inventa frases, slogans, inventa Pamonhada, Paçocada, cachaçada, galinhada. João que faz livros, faz filme, faz festa popular com música, dança, quitutes e cachaça, mistura o novo e o velho, coisa profanas, coisas sacras. João Faz-Tudo, se não faz, tem uma explicação. Ou não presta ou não vale a pena. Senão ele faria.  O João Faria.

Tá solto no mundo. Mundo velho sem porteira. Serviço pra todo lado. Mundo que nunca fica pronto. Sempre se fazendo, refazendo. Mundo pra sempre inacabado. Lá vai João pra todo lado. Lá vem João. Toca viola, traz a pinga e o pastel, que lá vem João. O João Plural. Também conhecido como João Rural.


Dimas Soares Alvarenga, publicitário, para o livro Retrato de um Povo de um Lugar, ATO II, João Rural – 40 anos de imagem, 1970-2010, de abril de 2010.

João Rural provou que o caipira vive

Por Francisco Dias de Andrade – Historiador

A região do Vale do Paraíba e do Litoral Norte sempre foram zonas privilegiadas nos campos da produção e investigação cultural paulista. Ela não só serviu de inspiração para personagens fictícios, que logo ganharam destaque em âmbito nacional, como os Jecas de Monteiro Lobato e Mazzaropi, como também foi um campo dos mais fecundos na investigação cultural. Cabe citar aqui, por exemplo, as importantes pesquisas levadas a cabo a partir da segunda metade do século XX por sociólogos e antropólogos renomados, como Emilio Willems, Robert Shirley, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Carlos Rodrigues Brandão.

No campo da preservação histórica, o Vale do Paraíba também teve um papel de destaque. Desde os primórdios das iniciativas preservacionistas no país, técnicos e pesquisadores têm encontrado na região um local dos mais fecundos em termos de testemunhos históricos e bens culturais das mais diversas épocas e origens. A fazenda Engenho d’Água, em Ilhabela; a fazenda Pau d’Alho, em São José do Barreiro, e o centro histórico de São Luiz do Paraitinga são alguns dos bens culturais da região reconhecidos pelo IPHAN como patrimônios nacionais. No âmbito estadual, o CONDEPHAAT conta com dezenas de bens tombados no Vale do Paraíba e Litoral Norte, como o Sanatório Vicentina Aranha, em São José dos Campos, o centro histórico de Areias e a própria Serra do Mar, em um tombamento que abrange vários municípios da região.

A rica história da produção e investigação cultural do Vale do Paraíba reflete-se no protagonismo que a região vem desempenhando, em âmbito estadual, nos últimos tempos. São Luiz do Paraitinga é o principal exemplo de uma cidade que soube valorizar sua cultura através das mais diversas manifestações, como marchinhas carnavalescas, festas religiosas e outras manifestações culturais típicas, como as modas de viola caipira e folguedos folclóricos. Existem, entretanto, outros municípios que se destacam em outros segmentos culturais. A cidade de Silveiras é uma das referências do tropeirismo, abrigando um evento dos mais importantes, a Festa do Tropeiro. Já a cidade de Cunha tornou-se rapidamente uma referência para a agroecologia brasileira, sediando anualmente a Feira de Sementes Crioulas e Mudas. Além disso, cumpre mencionar as dezenas de grupos folclóricos em atividade nas cidades da região, como os jongueiros de Guaratinguetá, os grupos de Moçambique em Paraibuna e as Congadas de Lagoinha. Já no Litoral Norte, os municípios de São Sebastião e Ubatuba merecem também ser mencionados por suas iniciativas pioneiras na implantação de políticas públicas municipais de proteção ao patrimônio histórico e de garantia de direitos a comunidades tradicionais de quilombolas e caiçaras.

Essa profícua trajetória cultural do Vale do Paraíba e Litoral Norte reflete-se no papel de destaque que a região ocupa dentro de alguns dos principais acervos e coleções iconográficas de caráter público no estado de São Paulo. Na realidade, trata-se esse de um campo no qual o protagonismo do Vale do Paraíba é quase incontestável.

Carlos Borges Schmidt

Desde a primeira metade do século XX, quando as iniciativas de pesquisas e documentação cultural têm início no estado de São Paulo, nossa região abrigou a maior parte das iniciativas públicas e particulares de documentação e registro cultural. Daremos aqui destaque a duas coleções de maior importância para nossos fins.

O primeiro fundo é a coleção do pesquisador Carlos Borges Schmidt (1908-1980), hoje pertencente ao Museu da Imagem e Som, na cidade de São Paulo. Mesmo que ainda pouco explorada, trata-se de uma das mais ricas coleções de fotografias e negativos voltadas para as manifestações culturais rurais de São Paulo. A coleção conta com cerca de 1.200 fotografias e mais de 2.000 negativos, a grande maioria feita pelo próprio Schmidt durante suas viagens de pesquisa – muitas delas em companhia do sociólogo Emilio Willems e do folclorista Alceu Maynard Araújo. Os registros foram compostos entre as décadas de 1930 e 1960 e compõem o mais rico acervo fotográfico sobre a cultura caipira de São Paulo, documentando os mais diversos aspectos da vida rural da época, como os trabalhos agrícolas, procissões e festas religiosas, a arquitetura de casas, capelas e pequenos núcleos urbanos e rurais e o artesanato de trançados, alfaias caseiras e instrumentos musicais. Embora as pesquisas de Schmidt tenham abrangido diversas zonas do estado (como o Vale do Ribeira e Litoral Sul e a região de Rio Claro, Sorocaba e os arredores da Capital), nenhuma outra região foi mais assiduamente frequentada por ele do que o Vale do Paraíba e Litoral Norte. Há assim centenas de fotos tiradas em municípios da região como Cunha, Ubatuba, São Luiz do Paraitinga, Redenção da Serra, Paraibuna, Silveiras, Areais, Bananal, São José do Barreiro, Lagoinha e Taubaté. Há também mais um grande número de fotos e negativos de municípios próximos, como Mogi das Cruzes, Salesópolis, Santa Izabel, Bragança Paulista, além de Parati- RJ.

A coleção de Carlos Borges Schmidt, composta entre as décadas de 1930 e 1960, constituí-se, portanto, no principal registro da vida rural da região na época imediatamente anterior à forte urbanização que vem pautando o desenvolvimento do Vale do Paraíba desde então. Trata-se esse de um fator importantíssimo a ser considerado para nossos propósitos, posto que estabelece um ponto de partida para o que vem a ser uma linha quase contínua de um verdadeiro corpus iconográfico da região que chegará até os dias de hoje.

O lugar estratégico do Vale do Paraíba, via de ligação natural entre as metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro, acentuou o processo de industrialização e o decorrente crescimento urbano que a região vem passando desde a década de 1960. Embora puxado por algumas poucas cidades principais, como São José dos Campos, Taubaté e Jacareí, esse processo acarretou em grande êxodo rural que acometeu todos os municípios do Vale do Paraíba, alterando drasticamente os padrões da vida rural. Ademais, o crescimento do porto de São Sebastião e a forte balnearização experimentada por todas as cidades do Litoral Norte também acarretaram forte ruptura nos modos de vida das comunidades litorâneas.

CONDEPHAAT

Esse decisivo momento de transição demográfica regional foi também muito bem documentado, encontrando-se hoje igualmente sob a guarda de um órgão público da Secretaria de Cultura do Estado. Durante década de 1970, o recém-instituído órgão estadual de preservação cultural, o Condephaat, iniciou um detalhado inventário do patrimônio cultural paulista, que não só mapearia os sítios dignos de tombamento, como também serviria para nortear novas políticas de preservação cultural. A primeira região a ser inventariada foi o Vale do Paraíba, em um trabalho de pesquisa e registro que durou entre 1975 e 1978, resultando em centenas de desenhos e fotografias dos bens arquitetônicos da região.

Embora as atenções estivessem voltadas inicialmente para as técnicas construtivas da arquitetura da região, o levantamento do Condephaat logo se tornou um dos mais interessantes e fecundos inventários já realizados, inovando a abordagem da arquitetura histórica. Ao documentar não apenas os exemplares arquitetônicos monumentais, como grandes fazendas de café, solares urbanos e igrejas ricamente ornamentadas, mas voltar-se principalmente para a arquitetura vernacular, o levantamento aproxima-se mais de um estudo pormenorizado da cultura material do Vale do Paraíba. Assim, somam se centenas de desenhos e fotos de casas caipiras de pau-a-pique, bairros rurais, pequenas capelas, oratórios domésticos, fornos de barro, engenhos de farinhas, monjolos, moinhos d’água, carros de boi, olarias de tijolos, antigos pousos de tropas e pontes rudimentares. Em suma, há registros de quase todos os elementos que em conjunto formavam uma verdadeira e coesa paisagem cultural.

Após a conclusão dessa primeira etapa, o programa de inventários foi interrompido e as outras regiões do estado nunca foram percorridas, fazendo com que apenas o Vale do Paraíba dispusesse de um levantamento tão detalhado feito pelo Condephaat.

João Rural

Justamente na mesma época em que o inventário do Condephaat ia terminando, o jovem João Evangelista de Faria retornava para Paraibuna, sua cidade natal. Tendo estudado fotografia em São Paulo, onde cursou a faculdade de jornalismo, João iria logo iniciar uma incessante atividade de fotografar as paisagens e gentes do Vale do Paraíba e do Litoral Norte.

Contrariando as vozes correntes nos grandes centros urbanos, que decretavam como morta a cultura caipira tradicional, João passou os últimos trinta anos registrando e promovendo a cultura de sua região. Suas lentes não deixaram de capturar nenhum aspecto da cultura rural da região. A culinária caipira e a vidas dos tropeiros foram suas grandes paixões e tornaram-se temas de predileção em sua fotografia, em suas reportagens e publicações, mas nunca foram interesses exclusivos. Estão ali registradas as festas religiosas e suas procissões e folguedos folclóricos, os mais diversos ofícios e trabalhos relacionados à vida rural, bem como as casas, os locais de trabalho e de lazer, os sítios e capelas que compõem as paisagens do Vale do Paraíba e Litoral Norte.

Se hoje essa região ocupa local de destaque no panorama cultural do estado, é porque João Rural provou-se certo contra os vaticínios pessimistas que davam como morta a cultura do homem rural em nosso estado. E após sua morte, ocorrida em 2015, cumpre agora garantir que seu acervo – a mais recente etapa na documentação da resiliência da cultura caipira – possa perdurar e estar ao alcance de todos os interessados do mesmo modo que seus congêneres mais antigos.

Francisco Dias de Andrade, doutorando em História da Arte pela UNICAMP, coordenador cultural do Projeto João Rural