…no fundo do meu tacho

Por João Rural

 

Ainda menino, com cinco, seis anos, lá no Bairro do Mata Onça em Paraibuna, minha avó tinha uma casa grande de pau a pique, que não me lembro direito como era por dentro. Mas me recordo muito bem o galpão que tinha ao lado, com o engenho de cana-de-açúcar, a roda de ralar mandioca e os tachos de cobre pra ferver o caldo de cana, fazer rapadura e torrar a farinha de mandioca. Ali me divertia com os equipamentos ou comendo as coisas que saiam do fogo, preparadas pelo meu tio e minha mãe.

 

Iniciando na comida

A gente pegava mandioca, descascava e jogava inteira no melado. Quando amolecia, retirava e colocava numa gamela pra comer. Fazia-se o mesmo com a abóbora madura, cortada em pedaços, deixando com a casca.

Era divertido sair à tarde pra passar a peneira no ribeirão e pegar pitus, guarus, peixinhos, caranguejos e lambaris. De vez em quando, uma cobra d´água… E, aí, correria pra todo lado. Só susto. Depois de um caldeirãozinho cheio, limpeza total da caça. Minha mãe levava tudo pra uma fritadeira e deixava dourar, bem temperado. Farinha de milho branca de monjolo pra completar, e lá vamos nós jantar mexido de peixinhos. Em algumas ocasiões, fazia-se um angu de farinha e misturava os peixinhos, enrolava numa folha de caeté e assava no borralho do fogão de lenha (assim mesmo que os caipiras falavam). Era a moqueca, a po-keka verdadeira.

E quando íamos procurar os poções no Rio Paraitinga, que passava ali perto, pra pegar traíras e bagres… De vez em quando um dourado fisgado pelo meu tio João Lhar. No caminho, passávamos na casa do Seu Aristides para tomar um café e bater um dedo de prosa. Pra acompanhar, café com bolo de fubá. Lembro que ele tinha um filho meio especial, o Alaor. Todos os dias ele passava com a tropa em frente a nossa casa, levando o leite do dia. Quando escutava o som do sinete que o burro frenteiro carregava, saía correndo abrir a porteira. O Alaor, muito divertido, deixava a gente montar um pouco até a outra porteira. E lá ia o Alaor comandando a sua tropa até o Bairro do Campo Redondo e nós pra casa.

 

Delícias do leite

Mudamos pro Bairro do Campo Redondo, onde meu pai foi tomar conta de um posto de leite da Usina Vigor. Aí a delícia era comer as bolinhas de manteiga que formavam nos latões trazidos pelas tropas de outros bairros. Outra delícia era quando chovia muito e os caminhões não conseguiam enfrentar as estradas. Meu pai desnatava o leite todo, fazendo manteiga e minha mãe fazia requeijão, queijos e coalhadas pra comermos.

Pelos idos de 1959, já estávamos morando na cidade, mais precisamente na Vila Camargo, propriedade de um dos descendentes da família Camargo. Meu pai continuou a trabalhar na Vigor, que ficava próximo à Fazenda São Rafael, propriedade do Nicanor de Camargo Neves.

Mas, como encontrou muita terra ociosa, fez uma parceria com a fazenda e passou a plantar milho, feijão e hortaliças. Aí, eu e meus irmãos maiores passamos a cuidar da horta, colher e vender na cidade.

Com 11 anos tive um problema de doença na perna e fiquei no hospital por seis meses. Quando voltei, não pude mais ir pra roça. Então fiquei na cozinha a descascar batatas, picar cebola, escolher feijão e outras pequenas tarefas. Nessa época, meu pai tinha pelo menos cinco empregados na lavoura. Eu ia levar o almoço no lugar do serviço. Nunca esqueço que a comida era arrumada num caldeirãozinho individual. Então eu arrumava um pra mim e levava pra comer lá na roça, sentado em baixo de uma árvore. A comida era arrumada de tal maneira, uma em cima da outra, que quando se ia comer a salada que ficava por cima, já tinha o sabor do feijão que tava no fundo do caldeirão.

Ali, num dos casarões abandonados, instalou-se uma fábrica de queijo, do Jaimão, diretor da Vigor na época. Fomos pra lá ajudar na fabricação de queijos, manteiga e requeijão. Como a fazenda tinha uma plantação de bananas, meu pai resolveu cuidar e minha mão começou a fazer doce. Talvez seja o primeiro doce de banana de Paraibuna, só que não ficou famoso. Assim nos finais de semana meu pai instalava uma barraca, que ele mesmo fez, na entrada do Bairro do Cuba, junto à Tamoios, e íamos vender queijos e o doce de banana, que minha mãe fazia em pedaços. No sábado de manhã era ali, no domingo à tarde era do ouro lado da estrada, em local antes dos turistas chegarem ao centro da cidade.

 

De cabeça na cidade

Logo a Vila Camargo foi desapropriada pra construção de uma vila de empregados que construiriam a represa. Meu pai comprou um terreninho perto da Usina Vigor e começou a erguer uma casinha. Mas inicialmente fomos morar na Rua Nova, na cidade, bem atrás do mercadão. Passei a frequentar muito o local, tomando contato com o fogado e pastel do Manezinho. Com 14 anos fui trabalhar no armazém do Ditinho, dentro do mercadão. Depois fui vender na rua as deliciosas empadas pro João Dutra. Eram fritas e não assadas. Passei pra uma barraca no Largo do Mercado, onde aprendi a fazer o pastel de feira, o primeiro da cidade.

Mudamos, mesmo sem terminar o reboco. Mais uma vez o destino leva pra comida. Bem em frente, funcionava uma fábrica de farinha de milho. Com a morte de meu pai, lá fui eu trabalhar na fábrica do Seu Moacir. Mas logo eu e meu irmão Néri fomos trabalhar no Bazar do Déia, e fui ficando fora do rumo dos sabores. Mas tinha importância no meu destino futuro. Aos poucos fui vender revistas e jornais na Estação Rodoviária da cidade, assim tomei contato com a comunicação, lendo muito, e de graça. Junto vendia bilhetes de loteria do Seu Antônio Mathias dos Reis Filho. Vendo nossa situação, ele acabou adquirindo o negócio do Seu Déia e passei a gerenciar pra ele. Assim o negócio prosperou com vendas de discos e loteria esportiva. Nessa época me interessei pela fotografia e, no final de 73, resolvi vender tudo e ir pra São Paulo estudar fotografia, comunicação, cinema. Mas, chegando ao SENAC em São Paulo, só tinha curso de gastronomia. Lá fui eu fazer e esperar abrir o de fotografia. Continuei em São Paulo, estudando o que queria, fazendo faculdade de turismo e comunicação.

Em 1977, comecei a voltar aos poucos, indo trabalhar na Prefeitura. De início criamos a FAPAP, Feira Agropecuária e Festa do Milho, como trabalho da faculdade.

Apesar de entrar pra comunicação, criando na cidade o jornal Folha da Serra, em 1982 já estava com o restaurante caipira, que funcionou por quatro anos.

Em 1986 mudei pra São José dos Campos, pra trabalhar no jornal ValeParaibano, onde editei o suplemento Vale Rural e assessorava algumas empresas do ramo rural.

Em 1993, de volta a Paraibuna, pra trabalhar na Prefeitura, novamente com um novo restaurante funcionando. Em 1996, com o programa Vale Rural, na TV Band Vale, largamos tudo e rodamos o Vale produzindo reportagens rurais e, principalmente, da comida regional.

 

João Rural

A partir de então, passei a entender o desvio da vida em busca da comunicação. Consegui juntar a comunicação, o turismo e a gastronomia e gerar resultados com a produção de vídeos, jornais, livros e publicidade sobre a comida regional do Vale do Paraíba.

 

Texto originalmente publicado no Livro “no Fundo do Tacho”, João Rural, de 2013.

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